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Diplomacia Fronteiriça e a Construção da Paz: Uma Análise a partir dos Estudos Fronteiriços Críticos

pessoas trocando experiências em região de fronteira
Diplomacia Transfronteiriça!

Resumo


A diplomacia fronteiriça emerge como uma estratégia central para a promoção da paz em regiões marcadas por conflitos persistentes e tensões transnacionais. Este artigo analisa, à luz dos Estudos Fronteiriços Críticos, os mecanismos pelos quais a diplomacia fronteiriça atua na transformação de zonas de fronteira de espaços de rivalidade para territórios de convivência e cooperação. O texto mobiliza literatura recente e estudos de caso, destacando o papel de atores locais, projetos culturais, gestão compartilhada de recursos naturais e participação inclusiva na efetividade das iniciativas de paz. Discute ainda os principais desafios e limitações à consolidação de processos diplomáticos fronteiriços, propondo caminhos para sua potencialização.


Palavras-chave: diplomacia fronteiriça; paz; estudos fronteiriços críticos; cooperação transfronteiriça; recursos naturais.


Introdução


Fronteiras têm sido tradicionalmente concebidas como linhas de separação e, frequentemente, como zonas de tensão e conflito (BRUNET-JAILLY, 2005). Contudo, abordagens críticas nos Estudos Fronteiriços vêm ressignificando o conceito de fronteira, compreendendo-a como espaço relacional, permeado por interações sociais, fluxos econômicos e disputas políticas que vão além da rigidez estatal (BRUNET-JAILLY, 2005; NEWMAN, 2006). Neste contexto, a diplomacia fronteiriça — entendida como a articulação de iniciativas diplomáticas entre atores estatais, subestatais e da sociedade civil em regiões de fronteira — ganha destaque como ferramenta fundamental para a construção de paz (Alemneh, 2025; Pugh, 2016; Kenee, 2022).


O objetivo deste artigo é analisar como a diplomacia fronteiriça contribui para a construção da paz, dialogando com o aporte dos Estudos Fronteiriços Críticos e utilizando dados empíricos recentes para fundamentar a análise.


Diplomacia Fronteiriça: Teoria Crítica e Novos Paradigmas


Os Estudos Fronteiriços Críticos desafiam a visão tradicional de fronteira como mera linha divisória. Autores como Brunet-Jailly (2005) e Newman (2006) argumentam que fronteiras são zonas de contato, negociação e disputa, marcadas por múltiplos atores e escalas. Essa abordagem permite enxergar a diplomacia fronteiriça não apenas como ação dos Estados, mas como um conjunto de práticas cotidianas, institucionalizadas ou informais, que buscam transformar rivalidades em convivência pacífica (Barrera et al., 2022; Cárdenas, 2019).


Por exemplo, nas fronteiras da África Oriental, práticas diplomáticas desenvolvidas entre comunidades indígenas, ONGs e governos locais têm reduzido episódios de violência e aberto espaços para a construção de projetos comuns (Alemneh, 2025; Kenee, 2022). Na América do Sul, experiências de gestão compartilhada de recursos naturais demonstram o potencial da diplomacia fronteiriça para prevenir conflitos ambientais e promover o desenvolvimento sustentável (Johnson et al., 2021).



Mecanismos de Contribuição da Diplomacia Fronteiriça para a Paz


A literatura recente e os estudos de caso apontam cinco mecanismos centrais por meio dos quais a diplomacia fronteiriça contribui para a paz:


1. Diálogo e Cooperação Transfronteiriça


A criação de fóruns e espaços de diálogo envolvendo comunidades, governos, organizações não governamentais e organismos internacionais tem se mostrado uma estratégia eficaz para a resolução de disputas locais em áreas de fronteira. Esses mecanismos fortalecem a confiança mútua, promovem soluções conjuntas para problemas compartilhados e contribuem para a construção de uma paz sustentável a partir do cotidiano das populações fronteiriças.


Um exemplo emblemático dessa abordagem pode ser observado na fronteira entre Etiópia e Quênia, especificamente entre os povos Turkana e Dassanech. Desde 2015, o programa Cross-Border Peace and Development Initiative, liderado pela IGAD (Autoridade Intergovernamental sobre o Desenvolvimento) com apoio das Nações Unidas, tem promovido fóruns comunitários e governamentais transfronteiriços voltados à mediação de conflitos entre pastores das duas etnias. Como resultado, os conflitos armados por disputa de pasto e gado na região do Lago Turkana foram reduzidos em mais de 30% entre 2015 e 2022 (Alemneh, 2025; Kenee, 2022).


No contexto sul-americano, o Brasil também apresenta iniciativas relevantes de cooperação transfronteiriça. Um exemplo significativo é o Fórum Binacional de Corumbá e Puerto Suárez, na fronteira entre Brasil e Bolívia. Trata-se de um espaço institucionalizado de diálogo entre autoridades locais e membros da sociedade civil de ambos os países, que promove ações conjuntas de enfrentamento à violência e ao tráfico, além de articular estratégias para integração econômica e proteção ambiental na faixa de fronteira (IPEA, 2015; FUNAI, 2021). Assim como no caso africano, a cooperação local transfronteiriça tem se mostrado essencial para transformar a fronteira em um espaço de convivência e desenvolvimento, e não de conflito.


2. Fortalecimento de Instituições Locais


O apoio a instituições indígenas, conselhos comunitários e organizações de base tem se revelado fundamental para a mediação de conflitos em contextos fronteiriços marcados por diversidade cultural e tensões estruturais. Ao valorizar os saberes e formas de organização locais, essas iniciativas ampliam a legitimidade dos processos de paz e tornam as soluções mais eficazes e sustentáveis, pois se ancoram nas dinâmicas sociais das próprias comunidades (Pugh, 2016; Kenee, 2022).


Um exemplo internacional dessa abordagem pode ser observado na fronteira entre Somália e Quênia, onde organizações internacionais vêm fortalecendo o papel de conselhos de anciãos e líderes tribais na mediação de conflitos armados e tensões étnicas. Esses atores locais, tradicionalmente respeitados pelas comunidades, passaram a exercer funções de governança comunitária, muitas vezes com maior legitimidade do que os próprios governos centrais, contribuindo para a redução de hostilidades e o fortalecimento da coesão social (Kenee, 2022).


De forma semelhante, no contexto brasileiro, destaca-se a experiência da região do Alto Solimões, na fronteira entre Brasil e Colômbia. Na Terra Indígena Tikuna, o fortalecimento de associações indígenas, escolas bilíngues e práticas pedagógicas interculturais tem favorecido o diálogo entre os povos tradicionais e o Estado, especialmente diante das ameaças representadas por garimpeiros e narcotraficantes. Projetos como o “Educação para a Paz” (ISA, 2020) têm ampliado a capacidade organizativa das lideranças indígenas, promovendo soluções locais para conflitos complexos e fortalecendo a autonomia comunitária em um território historicamente negligenciado pelas políticas públicas.


3. Projetos Culturais e Diplomacia Pública


A promoção de eventos culturais, intercâmbios artísticos e iniciativas de diplomacia pública tem se consolidado como uma estratégia eficaz para a construção de confiança mútua e a redução de estigmas em zonas de fronteira ou pós-conflito. Esses projetos possibilitam o encontro entre identidades diversas, estimulam o diálogo intercultural e ajudam a transformar a percepção do “outro” por meio da arte, da memória e da convivência simbólica (Mehani, 2025; Lagana & White, 2021).


Um exemplo emblemático dessa abordagem ocorre nos Bálcãs Ocidentais, onde países como Kosovo, Sérvia e Albânia enfrentam profundas cicatrizes históricas causadas por conflitos étnicos. O projeto Culture for Peace, apoiado pela União Europeia, promove festivais, oficinas e intercâmbios culturais entre jovens de diferentes origens, estimulando o diálogo, a empatia e a convivência pacífica entre comunidades marcadas por décadas de rivalidade (Mehani, 2025; EU Culture for Peace Report, 2023).


No contexto sul-americano, destaca-se o Festival de Culturas do Oiapoque, na fronteira entre o Brasil e a Guiana Francesa, com participação também do Suriname. Realizado com o apoio de prefeituras, universidades e organizações comunitárias, o evento reúne artistas, mestres de saberes tradicionais e lideranças de povos indígenas, afrodescendentes e migrantes, promovendo o reconhecimento da diversidade cultural como ferramenta para fortalecer a coesão social e a paz na fronteira (UFAP, 2022). Assim como nos Bálcãs, a arte e a cultura se tornam pontes simbólicas entre povos, transformando a fronteira em espaço de encontro, e não de separação.


4. Gestão de Recursos Naturais Compartilhados


Os conflitos relacionados ao acesso e uso de recursos naturais são especialmente recorrentes em zonas de fronteira, onde a presença de áreas ambientalmente sensíveis e a escassez de água e terras férteis tornam essas regiões mais vulneráveis a disputas. Nesses contextos, a cooperação transfronteiriça para a gestão ambiental tem se revelado uma estratégia eficaz para prevenir conflitos, fortalecer a governança territorial e promover o desenvolvimento sustentável em regiões historicamente negligenciadas (Johnson et al., 2021; Sommer & Fassbender, 2024).


Um exemplo expressivo dessa prática é observado na fronteira entre Colômbia e Venezuela, na região amazônica. Projetos liderados por organizações indígenas e ONGs como a Gaia Amazonas e a Fundación Natura têm promovido acordos binacionais para a proteção da Bacia do Rio Negro, com foco no uso sustentável da terra e no combate ao desmatamento. Essas iniciativas reduziram significativamente as tensões entre comunidades locais, demonstrando que a gestão compartilhada dos bens naturais pode ser um instrumento de pacificação e resiliência socioambiental (Johnson et al., 2021).


No contexto brasileiro, destaca-se a experiência da fronteira Brasil–Peru, no Vale do Javari (AM), uma das regiões mais biodiversas e sensíveis da Amazônia. Com o apoio da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA), vem sendo desenvolvida uma estratégia de gestão compartilhada de territórios indígenas e áreas protegidas, que busca prevenir a sobreposição de atividades ilegais, como pesca predatória, garimpo e tráfico. A cooperação entre os dois países tem fortalecido a segurança ambiental e contribuído para a proteção dos modos de vida tradicionais, reconhecendo as populações locais como agentes centrais na defesa da floresta (OTCA, 2022).


5. Participação Inclusiva


A promoção de processos de paz sustentáveis exige o engajamento de grupos historicamente marginalizados, como jovens, mulheres e migrantes. Ao ampliar a pluralidade de vozes, essas iniciativas não apenas enriquecem as soluções propostas, mas também contribuem para a redução de polarizações e a construção de consensos duradouros. Diversos estudos indicam que a inclusão de mulheres, em especial, está associada a acordos mais abrangentes e resilientes (Cárdenas, 2019).


Um exemplo emblemático dessa abordagem ocorreu na Geórgia, em meio aos conflitos congelados na Ossétia do Sul e na Abecásia. Por meio da chamada Women-to-Women Diplomacy, mulheres de diferentes lados do conflito construíram redes de diálogo e apoio mútuo, mesmo em contextos de ausência de reconhecimento estatal recíproco. Essa diplomacia informal, protagonizada por lideranças femininas, permitiu a mediação de tensões e o fortalecimento de vínculos comunitários em uma região marcada por impasses institucionais (Cárdenas, 2019).


No caso brasileiro, a fronteira entre Brasil e Venezuela, especialmente na cidade de Pacaraima (RR), tem sido palco de ações semelhantes. Em meio à crise migratória, mulheres venezuelanas refugiadas assumiram o protagonismo em iniciativas de acolhimento, mediação de conflitos cotidianos e empreendedorismo, tanto nos abrigos da Operação Acolhida quanto em comunidades locais. Organizações como a ONG Hermanitos e a Rede de Mulheres Brasileiras e Migrantes oferecem formação e apoio à inserção social e econômica dessas mulheres, reforçando o papel da participação inclusiva como eixo de transformação social e fortalecimento da paz nas zonas de fronteira (UNHCR, 2023).


Fatores de Sucesso e Desafios


Fatores de Sucesso


Abordagem Multinível: Processos que envolvem diplomacia estatal, organismos internacionais e atores locais tendem a ser mais eficazes (Alemneh, 2025; Pugh, 2016).


Inclusão Social: A pluralidade de atores amplia o repertório de soluções e aumenta a sustentabilidade dos acordos (Cárdenas, 2019; Barrera et al., 2022).


Gestão de Recursos: A cooperação ambiental serve como catalisador para a paz e integração regional (Johnson et al., 2021; Sommer & Fassbender, 2024).



Desafios Persistentes


Apesar dos avanços, persistem desafios como:


Falta de Compromisso Governamental: Mudanças de governo ou agendas nacionais podem minar esforços locais (Alemneh, 2024; Kenee, 2022).


Promessas Não Cumpridas: A ausência de implementação efetiva de acordos fragiliza a confiança entre partes.


Fatores Estruturais: Mudanças climáticas, escassez de recursos e proliferação de armas dificultam a estabilidade de processos de paz (Huda, 2021; Barrera et al., 2022).



Considerações Finais


A diplomacia fronteiriça, em diálogo com os Estudos Fronteiriços Críticos, mostra-se uma ferramenta imprescindível para transformar fronteiras de conflito em zonas de convivência e desenvolvimento. Ao valorizar o protagonismo de atores locais, promover inclusão social e compartilhar a gestão de recursos, cria-se um ambiente propício para a paz sustentável. Entretanto, o sucesso dessas iniciativas depende da cooperação multinível, do compromisso político e da capacidade de adaptação às complexas dinâmicas locais.


Futuros estudos devem aprofundar a análise de casos comparados e explorar o potencial de inovação social e institucional dessas experiências, em especial na América Latina e na África.


Referências


Suporte na Escrita de Capítulo
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