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Operação Contenção: Necropolítica, Racialização e a Militarização da Segurança Pública no Brasil

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A deflagração da chamada Operação Contenção em 28 de outubro de 2025 no Rio de Janeiro – mais letal ação policial da história do estado, com estimativas que variam entre 64 e mais de 120 mortos em poucos dias – evidencia não apenas uma escalada da militarização da segurança pública, mas a convergência de lógicas locais, nacionais e transnacionais de violência controlada.

O evento ocorre em sequência à decisão da ADPF 635 (ADPF das Favelas) do Supremo Tribunal Federal em abril de 2025, que encerrara a qualificação de estados de exceção nas comunidades fluminenses e autorizara um "plano de recuperação territorial", com destaque para medidas de segurança intensiva. Poucos meses depois, o cenário se cristaliza numa ação massiva de força letal, fortemente apoiada pelo governo estadual, que rotulou os alvos como "narcoterroristas" e descreveu a operação como "sucesso" absoluto, negando a existência de inocentes entre os mortos.


Nesse contexto, disputa-se a narrativa pública. De um lado, o governo e a grande mídia mainstream reforçam o frame da guerra ao tráfico: recuperação de territórios "domados" pelas facções, militarização urbana, "blindagem" das comunidades com uso de helicópteros, drones, blindados e milhares de agentes.


De outro lado, organizações de direitos humanos, imprensa investigativa e movimentos populares denunciam uma letalidade desproporcional, indícios de execução sumária, negligência no socorro de feridos e uma operação concebida como espetáculo de intimidação mais do que como policiamento judicial. Essa tensão revela como o caso se situa no cruzamento entre discursos de segurança, direitos humanos e imagem internacional do Brasil.


A aplicação das lentes teóricas de Achille Mbembe, Frantz Fanon, Sankaran Krishna e Narendran Kumarakulasingam ajuda a decifrar o que está em jogo: primeiro, pela via de necropolítica, Mbembe nos alerta para a lógica do poder soberano que decide sobre quem vive e quem morre.


No caso da Contenção, o Estado exerceu esse "direito de matar" em escala inédita no território urbano do Rio de Janeiro, situando as favelas como zonas de exceção onde os direitos fundamentais são suspensos. Em segundo lugar, Fanon permite ver que essas populações – majoritariamente jovens negros de periferia – continuam a ser definidas socialmente como "menos humanos", legitimando sua exterminação ou invisibilização. Em terceiro lugar, Krishna nos ajuda a entender o funcionamento do que ele chama de orientalismo cotidiano: a terminologia de "narcoterrorismo", "territórios incontrolados", "facções inimigas" desloca o debate sobre segurança social para o terreno da exceção militar, reduzindo indivíduos a identidades ameaçadoras e legitimando ações de força extraordinária.


Finalmente, Kumarakulasingam introduz o elemento da racialização do afeto e do "Caring International Self", ao mostrar como certas vítimas mobilizam compaixão, indignação e intervenção – enquanto outras são rapidamente categorizadas como dispensáveis ou culpadas por sua própria morte. No Brasil, a disparidade de reação pública e estatal entre os quatro policiais mortos – celebrados como mártires – e mais de cem moradores favelados mortos revela essa hierarquia de luto e valor de vida.


Em termos de conjuntura imediata, três tendências surgem no horizonte: a continuidade da militarização da segurança urbana como fórmula política-eleitoral; o risco de deslocamento das facções e da violência para municípios vizinhos, ampliando o custo social; e uma crescente pressão internacional sobre o Brasil quanto ao respeito a direitos humanos, que pode afetar acordos, cooperações e a reputação do país em foros multilaterais. No plano doméstico, o flamejante enxugamento da letalidade policial (metas, monitoramento, câmeras corporais, perícia independente) aparece como política pública emergente – embora ainda frágil –, enquanto o discurso de combate implacável ao crime mantém forte apoio em setores conservadores da sociedade.


Para a política pública, algumas recomendações são urgentes: garantir plena transparência e controle externo de operações de alto risco; priorizar a inteligência e a desarticulação de redes criminosas antes da força bruta; proteger civis e garantir continuidade de serviços públicos em áreas de intervenção; adotar métricas públicas de monitoramento de letalidade policial; revisar a formação policial quanto a raça, direitos humanos e cultura de paz; e reformular a comunicação pública para evitar rótulos raciais e de guerra que prejudicam o controle democrático da força. Sem essas medidas, há grande probabilidade de que operações como a Contenção se tornem a nova normalidade de segurança no Brasil – com o preço mais alto cobrado por comunidades negras e pobres.


Em síntese, a Operação Contenção representa um ponto de inflexão que expõe com clareza como a segurança pública no Brasil está imbricada com lógicas globais de poder, raça e exceção. Seu significado vai além do Rio de Janeiro ou de uma operação específica: trata-se de uma janela para compreender como vidas são hierarquizadas em sistemas de segurança, tanto nacional quanto internacional. Em última instância, a questão fundamental que emerge é: se queremos verdadeiramente uma sociedade que valorize todas as vidas, será preciso que a lógica da exceção, da militarização e da hierarquia racial seja radicalmente revisitada.

 
 
 

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