top of page
logo mauricio.jpg

Resenha Crítica: A Loteria do Nascimento de Michael França e Fillipi Nascimento

Introdução


A sociedade brasileira é marcada por extrema desigualdade, figurando entre as nações com os maiores contrastes nas condições de vida de sua população. Nesse contexto, o livro A Loteria do Nascimento: Filha do Porteiro Termina Universidade, mas Não Alcança Filho do Rico (2025), dos pesquisadores Michael França e Fillipi Nascimento, surge como uma contribuição provocadora ao debate sobre meritocracia, raça, classe e oportunidades. Os autores — ambos acadêmicos negros de origem humilde — trazem à tona uma “verdade inconveniente”: no Brasil, o ponto de partida define quase tudo; somente obter um diploma universitário não garante a tão almejada ascensão social para quem nasce em desvantagem. Em outras palavras, mesmo com educação superior, indivíduos de baixa renda ou grupos historicamente marginalizados continuam enfrentando barreiras substanciais impostas por desigualdades estruturais. Esta resenha crítica analisa os argumentos centrais da obra à luz de conceitos contemporâneos como interseccionalidade, precarização do trabalho e as teorias de pensadoras como Nancy Fraser e Patricia Hill Collins, conectando tais ideias às dimensões sociais e políticas do Brasil atual. Ao final, avalia-se em que medida A Loteria do Nascimento instiga reflexões e ações rumo a uma sociedade mais equitativa.


Análise Crítica


Contexto e tese central – A Loteria do Nascimento apresenta uma ampla revisão de pesquisas sobre desigualdade socioeconômica em linguagem acessível, desmontando o mito da meritocracia. A tese central do livro é clara: embora a educação seja importante, nascer em desvantagem impõe limitações persistentes que a escolarização por si só não supera. Os autores demonstram, com dados e exemplos, que filhos de trabalhadores de baixa renda ou da classe média, mesmo superando desafios e ingressando na universidade, seguem encontrando múltiplos obstáculos no mercado de trabalho e na vida cotidiana. Em vez de a formatura “nivelar o jogo”, persistem mecanismos sutis e explícitos de reprodução de privilégios. Como afirmam França e Nascimento, “A crença de que o diploma bastaria, [...] apagaria as desvantagens históricas, recompensaria o esforço, é balela. O ponto de partida, o lugar de onde cada um começa a corrida da vida, continua a ser determinante no sucesso [...] da carreira”. Essa frase contundente resume a crítica dos autores à ideia de que vivemos numa meritocracia plena. Eles expõem que jovens formados de origem popular continuam em desvantagem frente aos pares oriundos da elite. Por exemplo, recéns-formados das camadas populares frequentemente enfrentam um terreno mais árido porque não dispõem de certas vantagens informais, como:


  1. Redes de indicação e contatos no mercado de trabalho, ou seja, “não têm quem os indique antes da entrevista”;


  1. Capital cultural e senso de pertencimento aos círculos das elites – “os sinais de pertencimento que se ensinam em certas bolhas” lhes faltam;


  1. Segurança financeira para escolhas – diferentemente dos jovens ricos, eles não podem se dar ao luxo de recusar ofertas ruins, de fazer estágios não remunerados ou de investir em qualificações extras enquanto aguardam uma melhor oportunidade.



Tais obstáculos – muitas vezes invisíveis ou naturalizados pela sociedade – ajudam a explicar por que a mobilidade social é tão limitada. A obra, ao explicitar o peso das desvantagens herdadas, questiona se devemos aceitar passivamente que “as condições do nascimento” sigam como os maiores determinantes dos resultados de vida no Brasil. Nesse sentido, o livro é um convite à reflexão crítica sobre nossas estruturas sociais e valores.


Interseccionalidade e desigualdades estruturais


A discussão de França e Nascimento dialoga fortemente com o conceito de interseccionalidade, cunhado por Kimberlé Crenshaw e desenvolvido por autoras como Patricia Hill Collins. A interseccionalidade investiga como diferentes eixos de poder e opressão (raça, classe, gênero, etc.) se sobrepõem e se moldam mutuamente na experiência das pessoas. Collins define essa abordagem como uma ferramenta analítica para entender a complexidade do mundo social, reconhecendo que categorias como raça, gênero e classe não atuam isoladamente, mas de forma “imbricada” em uma matriz de opressão. No caso da “loteria do nascimento”, fica evidente que o ponto de partida de um indivíduo envolve múltiplos marcadores sociais: a “filha do porteiro” do título não enfrenta apenas a barreira econômica de ter nascido em família de baixa renda, mas possivelmente também desafios ligados a gênero (por ser mulher) e raça (no Brasil, desigualdades de classe estão historicamente entrelaçadas com desigualdades raciais). Os próprios autores do livro trazem um testemunho implícito dessa intersecção: ambos são negros que alcançaram alta formação acadêmica, mas reconhecem que ainda carregam o estigma e os obstáculos associados a sua origem racial e de classe. Assim, a obra reflete, na prática, o que a interseccionalidade teoriza – isto é, as desvantagens se agravam e se complicam quando diversos fatores atuam simultaneamente sobre os sujeitos.


Essa abordagem interseccional também já permeia iniciativas de políticas públicas no Brasil. O Guia INCLUA do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), por exemplo, propõe métodos para que gestores identifiquem e evitem a reprodução de desigualdades estruturais em programas governamentais. O Guia parte do reconhecimento de que as vivências de gênero, raça, classe, origem, sexualidade, entre outras, “imbricam-se” e requerem respostas integradas. Ele enfatiza que toda experiência de grupo ou individual sofre influências combinadas e simultâneas de múltiplos marcadores sociais. Em outras palavras, políticas eficazes de inclusão precisam considerar a sobreposição dessas categorias, não as tratá-las de forma isolada. Essa perspectiva dialoga diretamente com A Loteria do Nascimento: para que a educação seja realmente emancipadora, é preciso remover também as barreiras institucionais e culturais associadas a preconceitos de raça, gênero e classe. A interseccionalidade, enquanto “ferramenta para ação política”, sugere que a redução das desigualdades exige medidas multidimensionais – desde ações afirmativas (cotas educacionais e no mercado de trabalho, por exemplo) até a promoção de uma cultura antidiscriminatória nas organizações. A obra de França e Nascimento reforça essa necessidade ao evidenciar que sem mudanças estruturais abrangentes, as vitórias individuais (como um diploma) esbarram nos limites do sistema.


Reconhecimento, redistribuição e precarização 


A crítica presente no livro também evoca o debate teórico proposto por Nancy Fraser sobre justiça social em duas (ou mais) dimensões. Fraser argumenta que categorias como gênero e raça possuem tanto uma dimensão econômica quanto uma dimensão de status (cultural/política) – ambas importantes e irredutíveis uma à outra. Segundo Fraser, corrigir injustiças requer combinar redistribuição (correção de desigualdades materiais) com reconhecimento (valorização e respeito por identidades antes denegridas), evitando tanto visões puramente economicistas quanto abordagens meramente culturalistas. Ao lançar um olhar crítico sobre a meritocracia, A Loteria do Nascimento mostra justamente que uma política de redistribuição isolada – por exemplo, expandir o acesso à educação – embora necessária, não basta para equalizar oportunidades se não vier acompanhada de mudanças no “status” social conferido aos indivíduos. Um jovem de periferia com diploma pode ter igualdade formal de qualificações, mas continuará frequentemente sem o “reconhecimento” pleno: enfrenta o viés de empresas que preferem alguém de sobrenome influente, luta contra estereótipos de raça ou origem regional, ou não consegue se inserir em redes profissionais elitizadas. A paridade de participação, conceito também defendido por Fraser, só será atingida quando essas pessoas poderem competir em condições realmente equivalentes – o que demanda tanto distribuição justa de recursos (educação, emprego, renda) quanto mudança nas estruturas simbólicas e nas relações de poder dentro da sociedade. Nesse sentido, o livro de França e Nascimento alinha-se à ideia de Fraser de que a justiça social precisa ser integral. Ele denuncia a falácia de soluções simplistas e nos obriga a encarar a complexidade: é preciso melhorar as escolas e universidades e combater o racismo institucional e o classismo; gerar empregos e abolir o “quem indica” e outras formas de favoritismo; promover crescimento econômico e garantir representação diversa nos espaços de poder. Em suma, a obra nos lembra que não há bala de prata – a equalização das chances demanda um conjunto amplo de reformas socioeconômicas e culturais.


Outro aspecto crucial abordado indiretamente por A Loteria do Nascimento é a precarização do trabalho no mundo contemporâneo. Mesmo os formados oriundos das camadas populares que conseguem furar algumas barreiras frequentemente se deparam com um mercado de trabalho flexível e incerto, fruto de transformações econômicas recentes. Precarização refere-se ao fenômeno do emprego instável, temporário ou informal, geralmente mal remunerado, sem proteção social e incapaz de prover sustento adequado. O avanço da globalização neoliberal e das novas tecnologias criou uma economia onde empregos tradicionais diminuíram, gerando um “precariado”, ou precarizados – trabalhadores em situação precária, vivendo sem segurança ou previsibilidade. Importante notar que esse processo não afeta a todos por igual: grupos já vulneráveis tendem a ser os mais prejudicados. Estudos indicam, por exemplo, que a flexibilização tende a enfraquecer vínculos empregatícios principalmente para as mulheres – muitas vezes concentradas em setores informais, serviços terceirizados ou trabalhos domésticos desvalorizados. No Brasil, também pessoas negras e jovens das periferias compõem desproporcionalmente a força de trabalho informal e os empregos de “bico”. Essa dimensão de classe, gênero e raça na precarização complementa a análise de França e Nascimento: não basta examinar quem chega ao mercado de trabalho, mas em que condições. Uma filha de porteiro graduada pode acabar inserida em ocupações abaixo de sua qualificação, com baixos salários ou contratos instáveis, enquanto filhos da elite têm acesso às poucas vagas estáveis e bem remuneradas. A precarização, portanto, reforça a loteria do nascimento: aqueles nascidos sem uma rede de proteção ou capital econômico sofrem mais intensamente os efeitos de um mercado de trabalho volátil. Assim, a promessa de mobilidade via educação colide com a realidade de um mercado excludente, fragmentado entre uma minoria beneficiada e uma maioria vivendo de trabalhos incertos. A crítica social presente no livro se aprofunda quando vista sob essa lente: para combater a desigualdade, é preciso enfrentar também as novas formas de exploração do trabalho, regulando melhor as condições de emprego e assegurando direitos básicos a todos os trabalhadores – caso contrário, as credenciais educacionais dos menos privilegiados continuarão sendo subutilizadas ou desvalorizadas.


Reflexões finais e diálogo com soluções


A Loteria do Nascimento cumpre um papel relevante ao traduzir debates acadêmicos em linguagem acessível, estimulando um público mais amplo a refletir sobre as raízes da desigualdade brasileira. Seu lançamento reuniu pensadores de diferentes origens, indicando que o tema transcende divisões e urge ser discutido coletivamente. A obra desafia o otimismo ingênuo de que vivemos numa sociedade justa onde “quem se esforça, chega lá”, demonstrando que sem mudanças estruturais continuaremos desperdiçando talentos e aprofundando frustrações. Como contribuição crítica, o livro provoca incômodo – questiona privilégios naturalizados e evidencia o que muitos preferem ignorar. Poderíamos apontar, talvez, que os autores enfatizam mais o diagnóstico do que soluções detalhadas; porém, esse pode ser justamente o seu mérito: antes de prescrever receitas prontas, A Loteria do Nascimento nos força a encarar o problema em sua complexidade. Soluções existem e algumas já estão em curso – desde políticas de ações afirmativas (cotas para acesso à universidade e empregos públicos) até programas de transferência de renda e inclusão produtiva –, mas todas enfrentam resistências e precisam ser continuamente aperfeiçoadas. O próprio Guia INCLUA do IPEA mencionado anteriormente é exemplo de ferramenta que auxilia gestores a incorporarem critérios interseccionais na formulação de políticas, diminuindo riscos de exclusão não-intencional. Iniciativas assim indicam um caminho promissor, de repensar valores sociais e práticas institucionais para que o local de nascimento deixe de ser sentença de destino.


Conclusão


Em síntese, A Loteria do Nascimento de Michael França e Fillipi Nascimento é uma obra instigante que nos obriga a repensar os pilares da desigualdade brasileira. Por meio de uma análise embasada e relatos reveladores, o livro desmonta o discurso da meritocracia e ilumina as engrenagens menos visíveis que perpetuam privilégios de casta social e racial. Dialogando com conceitos contemporâneos – como a interseccionalidade de Patricia Hill Collins e a justiça bifocal de Nancy Fraser – a resenha reforça que a questão não é apenas econômica ou apenas cultural, mas abrangente e multidimensional. A mensagem central é contundente: educação, embora vital, não opera num vácuo – sem igualdade de condições de partida e sem derrubar preconceitos arraigados, a ascensão social de grupos historicamente excluídos seguirá truncada. Trata-se de uma chamada à ação para sociedade e governo: repensar nossas estruturas políticas e sociais de modo a quebrar a correlação entre berço e destino. Afinal, somente com políticas integradas de redistribuição de oportunidades (como melhorar a qualidade da educação básica, ampliar o acesso ao ensino superior e ao emprego digno) aliadas a políticas de reconhecimento e inclusão (combate efetivo ao racismo, machismo e outras formas de discriminação) poderemos, de fato, reduzir a influência da “loteria do nascimento” nas trajetórias individuais.


Enquanto resenha crítica, esta análise endossa a relevância de A Loteria do Nascimento ao expor verdades que muitos vivem e poucos reconhecem abertamente. França e Nascimento nos entregam um espelho da sociedade: ao nos vermos refletidos, não podemos mais negar que há algo de profundamente injusto quando o esforço pessoal esbarra em muros erguidos muito antes do nosso nascimento. Mais do que um livro, é um alerta e um convite para transformar indignação em mudanças concretas. Que essa discussão se espalhe – nas salas de aula, nas empresas, nas esferas de políticas públicas – pois somente assim, unindo conhecimento crítico e ação, conseguiríamos inverter a lógica cruel que faz do berço um destino. A Loteria do Nascimento nos lembra que uma sociedade verdadeiramente democrática e justa requer romper com a herança excludente do passado, construindo um presente onde talento e trabalho duro possam florescer sem amarras de origem. É uma tarefa desafiadora, mas inadiável, e passa por reconhecermos, como os autores bem pontuam, que mudar as regras desse jogo é responsabilidade coletiva de todos nós.


Referências: França, Michael; Nascimento, Fillipi. A Loteria do Nascimento. São Paulo: Jandira, 2025. Outros autores e fontes citados ao longo do texto.


 
 
 

Comentários


bottom of page