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Soberania e Ordem Internacional no Século XXI: Brasil, Sul Global e a Transição para uma Ordem Multiplex

brasília

Introdução 


A concepção moderna de soberania assenta-se na demarcação rígida entre o “dentro” — espaço da ordem jurídica e política estatal — e o “fora” — domínio de uma anarquia internacional presumida. Essa cisão inside/outside não apenas conformou a figura do Estado moderno, como também estruturou os próprios fundamentos teóricos das Relações Internacionais ao naturalizar a soberania como princípio primeiro da política (Walker, 1993). Três décadas após essa crítica, a aceleração das interdependências, a centralidade de atores transnacionais e a redistribuição relativa de poder tensionam esse arranjo moderno. Ao elaborar a metáfora da ordem internacional multiplex, Amitav Acharya sustenta que a arquitetura do pós-Guerra Fria vem sendo substituída por uma malha densa e policêntrica de ordens regionais, temáticas e institucionais — um “mundo G-plus”, dotado de múltiplos centros e camadas, no qual nenhuma direção hegemônica singular se impõe (Acharya, 2014; 2017; 2018).


Este ensaio aproxima a crítica de Walker à soberania moderna da tese multiplex de Acharya e dialoga com autoras e autores do Sul Global e da América Latina para examinar como o Brasil, enquanto potência emergente, pode navegar tal cenário, ampliar sua segurança (em sentido amplo) e projetar influência sem abrir mão da autonomia. Defendo que: (i) a soberania, longe de se extinguir, reconfigura-se como um conjunto de práticas relacionais e graduais (Sassen, 2006; Krasner, 1999; Agnew, 1994); (ii) a ordem multiplex favorece estratégias flexíveis de “não-alinhamento ativo” e hedging (Acharya, 2014; Goh, 2005; Stuenkel, 2016); e (iii) tais estratégias devem ser combinadas a um multilateralismo reformista, a um regionalismo inteligente e à cooperação Sul–Sul (Hurrell, 2007; Cervo; Bueno, 2011; Lima, 1994; Milani, 2012). Encerram-se as seções com um roteiro de política externa para o Brasil que articula soberania, segurança e influência à luz desse enquadramento analítico.



1. Walker e a crítica inside/outside: soberania como dispositivo moderno


Para R. B. J. Walker, a distinção moderna entre “dentro” e “fora” opera como um dispositivo de fronteirização sem o qual a própria soberania não se sustentaria: imagina-se o Estado como espaço de ordem, lei e identidade, enquanto o “internacional” é projetado como o domínio da anarquia, da diferença e do risco (Walker, 1993). Essa gramática não é descritiva nem neutra; ao contrário, ela performa o que enuncia. Ao traçar a linha inside/outside, produz-se o sujeito soberano que se pretende apenas descrever e, nesse gesto, despolitizam-se violências fundadoras — notadamente as coloniais — ao naturalizar hierarquias entre quem define o que conta como “interno” (soberania plena) e quem permanece “externo” (alteridade a ser tutelada, administrada ou intervinda) (Walker, 1993). A crítica de Walker, portanto, desloca a soberania do plano de um pressuposto ontológico para o de uma prática histórico-política que institui limites, identidades e competências.


As transformações contemporâneas tensionam esse dispositivo em múltiplas frentes. Primeiro, a porosidade funcional das interdependências — cadeias produtivas globais, fluxos digitais, pandemias e mudanças climáticas — embaralha a dicotomia territorializada da decisão, deslocando-a para arranjos interjurisdicionais e plataformas regulatórias distribuídas (Sassen, 2006). Segundo, proliferam soberanias graduais: longe de um atributo absoluto, a soberania manifesta-se como feixe de prerrogativas variáveis (comerciais, monetárias, sanitárias, ambientais), frequentemente negociadas, compartilhadas ou delegadas sem que isso se traduza, de modo linear, em “perda” ou “renúncia” (Krasner, 1999). Terceiro, a crítica ao territorial trap mostra que reduzir o poder ao controle homogêneo de um espaço nacional aprisiona a análise; o poder contemporâneo é também topológico, estruturado por redes, nós e fluxos que recortam o território e reconfiguram escalas de autoridade (Agnew, 1994). Por fim, a agenda de segurança ampliada e a lógica de regionalização da (in)segurança evidenciam que ameaças e vulnerabilidades se organizam crescentemente em complexos regionais, relativizando a pretensão do Estado de monopolizar a proteção no estrito plano nacional (Buzan; Wæver; De Wilde, 1998; Buzan; Wæver, 2003).


Dessas inflexões não decorre o “fim” da soberania, mas sua rearticulação. A fronteira deixa de operar como muralha e converte-se em interface — um ponto de acoplamento, gestão e disputa entre regimes jurídicos, economias políticas e tecnologias de governo. Em lugar da soberania como clausura, emerge a soberania como capacidade relacional, exercida em arranjos multilaterais, regionais e público-privados que modulam interdependências, reescalam competências e (re)definem quem decide, sobre o quê e em que condições (Sassen, 2006; Krasner, 1999; Agnew, 1994; Buzan; Wæver; De Wilde, 1998; Buzan; Wæver, 2003).


2. Acharya e a ordem multiplex: do unipolarismo ao “G-plus” 


Amitav Acharya argumenta que a transição do “momento unipolar” estadunidense para o presente não conduz a uma anarquia difusa, mas a uma ordem multiplex: um arranjo policêntrico no qual múltiplas ordens — regionais, setoriais e em rede — coexistem e se sobrepõem, definindo, por acoplamentos variáveis, os termos da governança global (Acharya, 2014; 2017; 2018). Em lugar de um “gestor único”, a coordenação internacional resulta cada vez mais de coalizões flexíveis e co-lideranças temáticas, como ilustram G20, BRICS (e sua expansão), União Africana e CELAC, que funcionam como plataformas de agregação de capacidades e de intermediação entre níveis decisórios (Acharya, 2014; 2018; Stuenkel, 2015). Para o Brasil, esse deslocamento abre espaço para lideranças por nicho e para o exercício de influência por meio da provisão de bens públicos (clima, saúde, segurança alimentar), sem a necessidade — e sem o custo — de uma hegemonia abrangente.


A multiplexidade é também normativamente plural. Diferentes concepções de ordem — liberal, desenvolvimentista, soberanista, pós-ocidental — coabitam e negociam compatibilidades, de modo que a “ordem liberal” aparece como um repertório entre outros, não mais como gramática exclusiva do internacional (Acharya, 2018; Tickner; Blaney, 2012). Nesse ambiente, a racionalidade estratégica dominante para potências médias tende a ser o hedging: em vez de alinhar-se rigidamente (balancing/bandwagoning), alternam-se parcerias por tema e por tempo, compondo arranjos que distribuem riscos e maximizam opções — prática especialmente visível nas estratégias asiáticas descritas por Evelyn Goh e cada vez mais replicada em outros contextos (GOH, 2005; 2006). O resultado é um policentrismo funcional em que a autoridade circula por redes público-privadas (cidades, empresas, plataformas) e por regimes setoriais (comércio, finanças, clima, saúde), reforçando a necessidade de competências regulatórias e diplomáticas capilares.


Por fim, a multiplex reforça o peso estruturante das regiões. À maneira do que propõe Andrew Hurrell, ordens regionais de alta densidade institucional passam a mediar o global, servindo de arenas de socialização, experimentação normativa e gestão de interdependências (Hurrell, 2007). Na metáfora de Acharya, o mundo não é um anfiteatro único, mas um complexo de salas interconectadas: influenciar a arquitetura global requer entrar por várias portas — regionais, setoriais e em rede — e saber conectar essas salas. Para o Brasil, esse desenho sugere que o reforço do regionalismo latino-americano, articulado a coalizões temáticas sul-sul e a engajamentos seletivos com polos extra-regionais, é caminho privilegiado para converter presença em poder de agenda dentro da ordem multiplex (Acharya, 2014; 2018; Stuenkel, 2015).


3. Perspectivas do Sul Global e da América Latina: autonomia, desenvolvimento e reformas 


A tradição latino-americana de política externa brasileira (PEB) tem sido pensada, desde ao menos os anos 1990, em torno da tensão entre autonomia e acesso: como ampliar a margem de manobra sem romper laços vitais com mercados, tecnologias e finanças globais (Lima, 1994)? Longe de um dilema estático, essa tensão foi reconfigurada por diferentes estratégias. Uma primeira vertente — frequentemente sintetizada como autonomia pela participação — sublinha que a inserção ativa em regimes e instituições multilaterais pode converter normas em recursos de poder, ao permitir ao Brasil definir agendas, construir reputação e arbitrar coalizões, em vez de recolher-se a uma neutralidade defensiva (Vigevani; Cepaluni, 2007). A experiência brasileira em comércio (OMC), clima e operações de paz exemplifica essa aposta na capacidade normativa como instrumento de influência.


Em paralelo, uma segunda vertente recoloca o desenvolvimento no centro da estratégia externa. Para Cervo e Bueno (2011) — e no desdobramento programático de Cervo (2008) — a inserção internacional não é um fim em si, mas política de desenvolvimento: coordenar política industrial, comércio, infraestrutura e financiamento para elevar produtividade e reduzir vulnerabilidades estruturais. No século XXI, essa agenda ganha novas camadas — transição verde, segurança sanitária e digital — exigindo políticas que articulem inovação tecnológica, sustentabilidade e adensamento produtivo (Cervo; Bueno, 2011; Cervo, 2008). Em outras palavras, soberania econômica e capacidade tecnológica passam a ser dimensões constitutivas da autonomia.


Uma terceira trilha interpreta a conjuntura como pós-ocidental, com a emergência de fóruns e instrumentos do Sul Global que complementam e tensionam a ordem existente. Stuenkel (2016) argumenta que arranjos como BRICS e o Novo Banco de Desenvolvimento não operam apenas como contrapesos, mas como plataformas de inovação institucional, capazes de induzir reformas nos regimes tradicionais por meio de competição normativa e oferta de bens públicos alternativos. Essa multiplicação de arenas amplia o menu estratégico do Brasil, ao permitir combinações mais finas de alianças temáticas e financiamento.


Por fim, as críticas decoloniais lembram que a universalidade das normas internacionais foi historicamente marcada por hierarquias e exclusões. Ao interpelar “universalismos abstratos”, Grovogui (2011) e Tickner e Blaney (2012) defendem a pluralização epistemológica e uma noção de justiça global atenta a histórias de dominação. Para o Brasil, essa inflexão legitima agendas de solidariedade internacional — combate à fome, saúde global, clima — não como apêndices humanitários, mas como fontes de poder e credibilidade numa ordem multiplex. Em conjunto, essas quatro correntes oferecem um léxico robusto para reconfigurar a PEB: participar para moldar regras, desenvolver para reduzir assimetrias, diversificar instituições para ampliar opções e incorporar perspectivas decoloniais para fundamentar a liderança em termos de justiça e inclusão (Lima, 1994; Vigevani; Cepaluni, 2007; Cervo; Bueno, 2011; Cervo, 2008; Stuenkel, 2016; Grovogui, 2011; Tickner; Blaney, 2012).


4. Soberania, segurança e influência: o que significa “ganhar” na ordem multiplex 


4.1 Soberania como capacidade de modular interdependências


Na ordem multiplex, “proteger a soberania” não equivale a erguer barreiras, mas a governar interdependências: reduzir vulnerabilidades críticas sem comprometer abertura e dinamismo. Isso requer, primeiro, resiliência produtiva — diversificação de fornecedores, internalização de nós estratégicos (por exemplo, princípios ativos farmacêuticos, semicondutores “maduros”, fertilizantes de baixo carbono) e participação em consórcios tecnológicos que ampliem aprendizado e poder de barganha (Sassen, 2006; Cervo; Bueno, 2011). Requer, segundo, soberania digital: dados, infraestrutura de nuvem, inteligência artificial e padrões técnicos configuram um novo tabuleiro de poder no qual capacidade regulatória, infraestrutura própria e alianças técnico-científicas determinam não apenas eficiência econômica, mas também autonomia decisória (Agnew, 1994; Hurrell, 2007). Por fim, impõe-se uma soberania climática e sanitária, pois cadeias de saúde e a transição energética — de biocombustíveis avançados ao hidrogênio e à proteção florestal — reescrevem a segurança nacional como segurança socioecológica, integrando proteção ambiental, saúde pública e resiliência a choques globais (Buzan; Wæver; De Wilde, 1998). Em conjunto, essas frentes deslocam a soberania de um ideal de clausura para uma capacidade relacional de modular riscos, reescalar competências e transformar interdependências em ativos estratégicos.


4.2 Segurança como gestão regional de riscos


No sistema sul-americano, a baixa propensão a guerras interestatais convive com alta densidade de riscos transnacionais — criminalidade organizada em fronteiras, desmatamento e degradação ambiental, fluxos migratórios precários e vulnerabilidades infraestruturais (Buzan; Wæver, 2003). “Ganhar” segurança, nesse contexto, significa arquitetar cooperação: interoperabilidade policial e aduaneira, inteligência financeira contra redes ilícitas, vigilância ambiental compartilhada e missões cívico-militares de apoio logístico, operando de modo multiescalar (nacional–subnacional–regional). Exige também diplomacia de prevenção — mecanismos de gestão de crises, medidas de confiança, mediações e “boas-oficinas” — campo no qual o Brasil historicamente dispõe de vantagem comparativa, seja pela tradição de autonomia negociada, seja pelo capital diplomático acumulado (Lima, 1994; Amorim, 2015). A isso se soma a centralidade da segurança humana: políticas de proteção a populações vulneráveis (saúde, alimentação, resposta a desastres) não apenas mitigam riscos, como legitimam a liderança regional ao conectar segurança a direitos e bem-estar. Em suma, a segurança regional efetiva resulta menos de dissuasão interestatal e mais da governança cooperativa de riscos compartilhados.


4.3 Influência como capacidade de coalizão e de agenda


A influência, na ordem multiplex, mede-se pela aptidão de articular coalizões e moldar agendas. Potências médias ampliam voz quando lideram coalizões temáticas — comércio agroindustrial sustentável, bioeconomia amazônica, saúde pública, cidades inteligentes, governança da IA — e quando estruturam “clubes de alto impacto” (p. ex., climate clubs e cadeias “forest-positive”) capazes de gerar bens públicos e sinalizar padrões a serem difundidos (Stuenkel, 2015; 2016). Essa estratégia deve ser ancorada em um multilateralismo reformista, com campanha consistente por reformas de governança (CSNU, OMC, financiamento climático) e com a apresentação de textos operacionais e pacotes Sul–Sul que conciliem ambição normativa e viabilidade política (Hurrell, 2007; Acharya, 2018). Finalmente, uma diplomacia do conhecimento — expansão de redes universitárias, centros de excelência e cooperação técnica em saúde, agricultura tropical e energias renováveis — converte reputação em soft power de utilidade pública, fortalecendo a posição negociadora e a capacidade de agenda. Nessas condições, “ganhar” significa instituir padrões, coreografar coalizões e produzir bens que outros desejem adotar, traduzindo presença em poder efetivo.


5. Estratégia brasileira na ordem multiplex: princípios e instrumentos (versão revisada)


5.1. Não-alinhamento ativo e hedging disciplinado.

A autonomia decisória brasileira depende de um equilíbrio fino entre os principais polos — EUA, UE e China —, combinado à ampliação de pontes estratégicas com Índia, Indonésia, África do Sul e o mundo árabe. Em vez de adesões rígidas, o Brasil deve praticar um hedging temático e temporal: cooperar com EUA/UE em clima, ciência e regulação; aprofundar com a Ásia infraestrutura, logística e manufaturas; e articular com Índia/África capacidades em fármacos, saúde pública e agricultura tropical (Acharya, 2014; Goh, 2006; Stuenkel, 2016). Trata-se de gestão de riscos e opções, não de indecisão: diversificar vínculos, reduz vulnerabilidades e amplia poder de barganha.


5.2. Regionalismo funcional de “alta densidade”.

Reforçar a arquitetura latino-americana como plataforma de bens públicos regionais é condição para transformar presença em poder de agenda. Isso implica revitalizar o Mercosul com uma pauta regulatória de serviços e economia digital; reativar a Unasul em saúde, resposta a desastres e infraestruturas críticas; consolidar a OTCA/Casa Amazônia em monitoramento florestal e bioeconomia; e usar a Celac para posições comuns em clima e finanças. Liderança que entrega bens concretos legitima o papel do Brasil e densifica interdependências virtuosas na região (Hurrell, 2007; Lima, 1994).


5.3. Soberania produtiva e digital.

A proteção da soberania, hoje, exige capacidade produtiva estratégica e governança de dados. Uma política industrial verde deve priorizar fertilizantes de baixo carbono, biorrefinarias, maquinário elétrico pesado e semicondutores “maduros” para cadeias agroindustriais e automotivas. No plano digital, urge desenvolver nuvem soberana, regras para dados públicos e consórcios de IA voltados à língua portuguesa e a aplicações sociais, articulando universidades, startups e empresas públicas (Sassen, 2006; Cervo; Bueno, 2011). O objetivo é modular interdependências sem autarquia, internalizando nós críticos e qualificando inserções.


5.4. Segurança ampliada e cooperação de fronteiras.

O complexo de segurança sul-americano demanda governança cooperativa de riscos: interoperabilidade policial-aduaneira, inteligência financeira contra ilícitos, vigilância ambiental compartilhada e operações conjuntas em áreas sensíveis. As Forças Armadas devem atuar como vetores logísticos e científico-tecnológicos em projetos amazônicos — sempre integradas a políticas civis, de proteção de povos tradicionais e de fiscalização ambiental. A chave é reduzir externalidades negativas transfronteiriças com arranjos multiescalares e protocolos comuns (Buzan; Wæver, 2003).


5.5. Multilateralismo propositivo e reformista.

Para converter capital diplomático em resultados, o Brasil precisa propor textos negociáveis de reforma do CSNU, OMC e OMS; articular pacotes Sul–Sul viáveis (acesso a financiamento climático, transição energética justa, segurança sanitária); e usar iniciativas minilaterais — BRICS+, IBAS 2.0, coalizões temáticas — como incubadoras normativas que depois retroalimentem instituições universais (Acharya, 2018; Stuenkel, 2015). O foco deve recair em soluções operacionais, mensuráveis e escaláveis.


5.6. Diplomacia do conhecimento e soft power de utilidade pública.

Ampliar a cooperação técnica (Embrapa, Fiocruz, Butantan), redes universitárias e centros de excelência permite transformar reputação em influência prática por meio da entrega de bens públicos — vacinas, sementes adaptadas, dados ambientais abertos, formação de quadros (Lima, 1994; Amorim, 2015). Esse soft power “útil” ancora narrativas de liderança responsável, sustenta coalizões temáticas e cria dependências positivas que reforçam a posição negociadora do Brasil na ordem multiplex.


Conclusão 


A soberania não desaparece na ordem multiplex; ela se transforma. A partir da crítica de Walker (1993), compreender que a linha inside/outside é histórica e política abre espaço para o Brasil concebê-la não como barreira rígida, mas como interface, isto é, um ponto de gestão de fluxos, coordenação de normas e disputa de significados. Esse deslocamento permite ao país abandonar a ideia de soberania como isolamento e reforçá-la como capacidade relacional, modulando interdependências em benefício próprio.

Com Acharya (2014; 2018), a noção de ordem multiplex destaca que a liderança internacional deixou de ser unívoca e hierárquica para tornar-se distribuída e coalicional. Nesse ambiente, “ganhar” não significa impor hegemonia, mas sim prover bens públicos, coordenar normas e organizar capacidades em rede. Potências emergentes que dominam essas competências conseguem aumentar sua segurança e projetar influência mesmo sem recorrer à força ou à hegemonia tradicional.

Para o Brasil, a boa estratégia não reside em escolher “um lado”, mas em organizar interdependências a seu favor. Isso implica praticar um hedging disciplinado, investir em um regionalismo funcional de alta densidade, fortalecer soberania produtiva e digital, expandir a segurança em bases cooperativas e sustentar um multilateralismo reformista e propositivo. Complementarmente, o país deve apostar em uma diplomacia do conhecimento que converta reputação em influência prática.

Ao adotar essas diretrizes de modo consistente, o Brasil é capaz de reduzir vulnerabilidades críticas, legitimar sua liderança regional e expandir sua influência global. Trata-se de honrar a tradição latino-americana de busca por autonomia, agora com os instrumentos e redes próprias de um século XXI multiplex.


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