O que a “Declaração de Nova Iorque” realmente muda: poder, direito e o novo custo do isolamento
- Maurício Kenyatta
- 16 de set.
- 4 min de leitura

Quando a Assembleia Geral da ONU aprovou, em 12 de setembro de 2025, a Declaração de Nova Iorque — 142 votos a favor, 10 contra e 12 abstenções — o sistema internacional sinalizou duas coisas ao mesmo tempo: (i) a retomada de uma coalizão global pela solução de dois Estados e (ii) a marginalização explícita do Hamas como ator governante em Gaza. O texto condena os ataques de 7 de outubro, exige a libertação de reféns e pede que o Hamas entregue o controle e as armas à Autoridade Palestina (AP), prevendo inclusive uma missão internacional temporária de estabilização. É uma resolução não vinculante, mas politicamente densa — e por isso mesmo com efeitos reais na correlação de forças diplomáticas.
1) O mapa dos votos e a mensagem estratégica
O placar expressivo isola Israel e EUA numa questão central do conflito, ao passo que europeus, árabes e atores do Sul Global convergem num roteiro: cessar-fogo, transição do poder em Gaza para a AP, passos “tangíveis, datados e irreversíveis” rumo a dois Estados. Ainda que não crie um Estado pela caneta da Assembleia, a resolução recompõe a maioria normativa em torno de parâmetros que andavam fragmentados desde 2023.
O contraste ficou explícito: Washington classificou a medida de “publicidade mal calibrada”, e Israel chamou a Assembleia de “circo político”; do outro lado, França e Arábia Saudita protagonizam a engenharia diplomática, abrindo espaço para novos reconhecimentos formais por países ocidentais.
2) Brasil e China: multilateralismo aplicado (e interesses)
O Brasil votou a favor, coerente com o reconhecimento formal da Palestina desde 2010 e com a linha de defesa do direito internacional e de dois Estados. Nas últimas intervenções em Nova Iorque, o Itamaraty tem reiterado cessar-fogo, proteção de civis e fortalecimento da AP — agenda que esta declaração amplifica.
A China também apoiou, em sintonia com sua narrativa de que dois Estados são “a única saída” e de que a ONU deve liderar um processo com cronograma e verificação. Para Pequim, o endosso agrega capital reputacional no mundo árabe e compõe seu discurso de ordem internacional “mais representativa”, ao mesmo tempo em que preserva margem para negócios e mediação regional.
3) O que significa excluir o Hamas — e o que não significa
A cláusula que condiciona o avanço político ao desarmamento do Hamas e à transferência de autoridade para a AP produz três efeitos: (a) restaura a centralidade diplomática da AP como contraparte legítima; (b) isola atores armados que não aceitam parâmetros mínimos de responsabilização; e (c) reduz o incentivo externo a manter uma “dupla governança” palestina.
Críticos alertam para a representatividade de Gaza — afinal, a geopolítica não elimina fatos sociais —, mas a maioria dos Estados concluiu que sem desarme e sem AP à frente, não há processo. Em termos jurídicos, nada muda nas obrigações de Israel nem no status de membro-observador da Palestina; em termos diplomáticos, muda o consenso operativo sobre “quem senta à mesa” e sob quais condições.
4) Efeitos geopolíticos: o novo custo de nadar contra a maré
Três consequências se impõem:
Pressão escalonada sobre Israel: o voto amplia o preço reputacional de prolongar a guerra sem horizonte político — inclusive entre parceiros europeus que tradicionalmente evitavam dissensos públicos nessa pauta.
Coordenação árabe-ocidental inédita: França e Arábia Saudita constroem pontes entre a Liga Árabe, UE e países da Commonwealth, abrindo janela para reconhecimentos sincronizados do Estado palestino durante a semana de alto nível em Nova Iorque.
Rearranjo do “centro de gravidade” palestino: se prosperar a transição, Gaza tende a ser ancorada por segurança internacional temporária e gestão civil sob a AP, o que poderia reabrir canais econômicos e humanitários.
5) O fio histórico: da maioria simbólica à maioria operacional
Desde 2012, quando a Palestina ganhou status de Estado observador não-membro, a maioria da AG já era simpática ao tema. A diferença de 2025 é a passagem de um reconhecimento difuso para um roteiro operacional: cessar-fogo, reféns, desarmamento do Hamas, transição para a AP e missão de estabilização — um checklist implementável que permite medir avanço (ou retrocesso) e responsabilizar atores.
6) Como isso reverbera na informação (e na desinformação)
A cobertura internacional convergiu no essencial — maioria esmagadora, exclusão do Hamas, missão internacional — e divergiu na ênfase: parte da imprensa destacou o isolamento de EUA e Israel; veículos de Israel e aliados ressaltaram o risco de “premiar o Hamas”; mídias do mundo árabe celebraram um passo histórico; e agências chinesas sublinharam a via multilateral pragmática.
Caminhos Concretos para a Paz e o Papel do Brasil
O primeiro passo essencial é transformar a norma em mecanismo. A resolução aprovada na Assembleia Geral cria parâmetros gerais, mas precisa ser detalhada em termos de mandato, duração e regras de engajamento de uma eventual missão internacional em Gaza.
Outro elemento decisivo é amarrar os incentivos econômicos à transição política. Reconstrução, investimentos comerciais e reconhecimento diplomático não podem ser distribuídos de maneira irrestrita.
Por fim, é crucial discutir o papel do Brasil como liderança de ponte. O país possui credenciais históricas no multilateralismo e pode convergir com França, Arábia Saudita e União Europeia no desenho da missão internacional.
Conclusão
A Declaração de Nova Iorque não cria o Estado Palestino, mas redefine os termos do jogo internacional ao gerar custos claros para a manutenção da guerra e incentivos objetivos para a transição rumo a dois Estados. O recado é inequívoco: existe um caminho, e ignorá-lo tem um preço.




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