PEC da Blindagem: retrocesso democrático e riscos para a accountability no Brasil
- Maurício Kenyatta
- 23 de set.
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A “PEC da Blindagem” (PEC 3/2021) reabre a porta para um filtro político prévio antes que o Judiciário processe criminalmente parlamentares federais. Ela reverte a lógica introduzida pela EC 35/2001, que havia suprimido a exigência de licença prévia da Casa e a substituído por uma possibilidade de “sustação” posterior, excepcional e motivada (Brasil, 2001; Senado Federal, 2007). Em 16–17 de setembro de 2025, a Câmara aprovou o texto em dois turnos e encaminhou a proposta ao Senado; a tentativa de reassentar voto secreto oscilou entre versões e destaques, mas a diretriz central — subordinar a abertura de ação penal ao aval prévio político — foi mantida (Câmara dos Deputados, 2025; Agência Brasil, 2025a; CNN Brasil, 2025). A mudança de conjuntura em relação a 2001 é evidente: naquela quadra, buscou-se tirar a política da porta de entrada da persecução, reforçando accountability sem violar a independência do mandato; em 2025, após anos de atritos interinstitucionais e agendas corporativas, o Congresso tenta reintroduzir o veto político ex ante, repolitizando o gatilho da responsabilização (Senado Federal, 2007; Agência Brasil, 2025a).
O efeito não se limita ao plano federal. O texto aprovado prevê aplicação também a deputados estaduais e distritais, produzindo um “efeito cascata” na federação (Agência Brasil, 2025b; Câmara dos Deputados, 2025). Ainda que vereadores não estejam expressamente contemplados, há dois vetores de difusão: (i) a pressão política para replicar simetricamente arranjos de imunidade nos entes subnacionais (princípio da simetria) e (ii) a tendência de assembleias e câmaras locais tentarem incorporar proteções adicionais em Constituições estaduais e Leis Orgânicas, algo que já motivou controvérsias no STF sobre a extensão de imunidades federais ao nível estadual (v.g., ADIs 5.824 e 5.825) (Agência Brasil, 2025b). Na prática, a capilarização do filtro político — mesmo que não atinja automaticamente o nível municipal — pode comprometer a responsabilização em larga escala, especialmente onde redes locais de poder e orçamento são mais opacas.
Do ponto de vista da qualidade democrática, os riscos são triplos. Primeiro, o enfraquecimento dos freios e contrapesos: deslocar para a arena corporativa das Casas a decisão sobre quem pode ser processado corrói a isonomia e a independência funcional dos Poderes (Câmara dos Deputados, 2025; JOTA, 2025). Segundo, a redução de transparência e de accountability: a própria discussão sobre voto secreto e a filtragem política ex ante desincentivam a responsabilização, elevando custos de avanço de casos sensíveis (Agência Brasil, 2025a; Câmara dos Deputados, 2025). Terceiro, o impacto na integridade pública: especialistas e entidades de controle alertam que o mecanismo tende a atrasar, travar ou inviabilizar investigações sobre orçamento, emendas e conexões ilícitas — um retrocesso institucional (Transparência Internacional – Brasil, 2025; MCCE, 2025). Em síntese, imunidades devem proteger a função (palavras, opiniões e votos), não blindar comportamentos estranhos ao mandato (Senado Federal, 2007).
Esse desenho interno reverbera externamente. À luz da Convenção da ONU contra a Corrupção (UNCAC), os Estados devem assegurar instrumentos efetivos de prevenção, investigação e persecução — sem interferências indevidas que esvaziem a efetividade (UNODC, 2004). A Carta Democrática Interamericana afirma como elementos essenciais a separação e independência dos poderes e o Estado de Direito; dispositivos que politizam a autorização para processar parlamentares friccionam esse núcleo (OEA, 2001). A convergência com padrões OCDE de integridade pública também sofre, afetando indicadores de governança e avaliação de risco institucional por investidores e organismos (OCDE, 2017; Transparência Internacional – Brasil, 2025). Em termos econômicos e de cooperação jurídica internacional, a previsibilidade e celeridade do enforcement compõem o “risco-país institucional”: a leitura de “blindagem” reduz confiança, pode dificultar assistência mútua e extradições sensíveis, e desestimula due diligence positiva (CNN Brasil, 2025; JOTA, 2025). No plano de soft power, incoerências entre discurso externo anticorrupção e práticas internas enfraquecem a autoridade normativa do Brasil em foros multilaterais (Agência Brasil, 2025a; OCDE, 2017).
Qual agenda democrática é desejável? Reequilibrar Poderes e aumentar o controle sobre os três. No Legislativo: deliberação nominal, aberta e motivada sobre prerrogativas; prazos peremptórios; vedação a procedimentos que reduzam transparência; e limites estritos à sustação posterior, com possibilidade de controle judicial quando houver abuso (Câmara dos Deputados, 2025; Senado Federal, 2007). No Judiciário: fundamentação reforçada e autocontenção em medidas excepcionais, preservando a independência sem ativismos desnecessários. Nos órgãos de controle e persecução: autonomia técnica, proteção contra retaliações e capacidade investigativa compatível com o escrutínio de orçamentos e emendas, para reduzir incentivos à captura. Em todos os níveis da federação: barreiras claras à “importação” acrítica de blindagens, com atenção às lições das ADIs sobre extensão indevida de imunidades. Essa trilha é mais coerente com a EC 35/2001 e com o constitucionalismo democrático que o país vinha consolidando desde o pós-1988 (Brasil, 2001; Senado Federal, 2007).
A PEC 3/2021 degrada a qualidade democrática ao repolitizar o gatilho da persecução penal, com potencial de capilarizar a blindagem para estados e estimular tentativas de replicação nos municípios. Além de aumentar o risco de impunidade, gera ruído com compromissos internacionais anticorrupção, piora a percepção de integridade e fere a coerência da atuação externa do Brasil. Se a meta é uma democracia mais forte, o caminho é o inverso: imunidade material robusta, sim; licença prévia para responder à Justiça, não.
Referências
AGÊNCIA BRASIL. Câmara aprova texto que dificulta denúncia criminal contra parlamentar. Brasília, 16 set. 2025. Disponível em: Agência Brasil – EBC. Acesso em: 21 set. 2025.
AGÊNCIA BRASIL. Câmara derruba voto secreto em PEC da Blindagem por falta de quórum (atualizações sobre destaques). Brasília, 17 set. 2025. Disponível em: Agência Brasil – EBC. Acesso em: 21 set. 2025.
AGÊNCIA BRASIL. PEC da Blindagem se estenderá a deputados estaduais e distritais. Brasília, 18 set. 2025. Disponível em: Agência Brasil – EBC. Acesso em: 21 set. 2025.
BRASIL. Emenda Constitucional nº 35, de 20 de dezembro de 2001. Altera a redação do art. 53 da Constituição Federal. Brasília: Planalto, 2001. Acesso em: 21 set. 2025.
CÂMARA DOS DEPUTADOS. Câmara conclui a votação da PEC das Prerrogativas; proposta segue para o Senado. Brasília, 17 set. 2025. Acesso em: 21 set. 2025.
CÂMARA DOS DEPUTADOS. PEC 3/2021 – ficha de tramitação e inteiro teor. Brasília, 2025. Acesso em: 21 set. 2025.
CNN BRASIL. PEC da Blindagem: saiba como votou cada deputado. São Paulo/Brasília, 16–17 set. 2025. Acesso em: 21 set. 2025.
JOTA. O que muda com a PEC da Blindagem? Entenda o texto que amplia proteções a parlamentares. São Paulo, 18 set. 2025. Acesso em: 21 set. 2025.
OCDE. OECD Recommendation on Public Integrity. Paris: OECD Publishing, 2017. Acesso em: 21 set. 2025.
OEA. Carta Democrática Interamericana. Lima/Washington, 2001. Acesso em: 21 set. 2025.
SENADO FEDERAL. Imunidade parlamentar no Brasil antes e depois da EC 35/2001. Revista de Informação Legislativa, a. 44, n. 173, p. 239–254, 2007. Acesso em: 21 set. 2025.
TRANSPARÊNCIA INTERNACIONAL – BRASIL. Nota pública sobre a PEC 03/2021. Brasília, 17 set. 2025. Acesso em: 21 set. 2025.
UNODC. United Nations Convention against Corruption. Nova York/Viena, 2004. Acesso em: 21 set. 2025.




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