Soberania: Fundamentos Clássicos, Dimensões Contemporâneas e Desafios Atuais
- Maurício Kenyatta
- 4 de ago.
- 5 min de leitura

Introdução
O conceito de soberania é um dos pilares da teoria política e do direito internacional, representando a autoridade suprema e independente de um Estado sobre seu território e sua população. Desde o surgimento das teorias clássicas, entre os séculos XVI e XVIII, até as reformulações contemporâneas, a soberania tem passado por intensos debates, adaptações e críticas, refletindo mudanças históricas, transformações sociais e desafios impostos pela globalização e pelas novas tecnologias.
No contexto brasileiro, compreender a soberania não é apenas uma questão teórica, mas também prática e estratégica. A definição de políticas públicas, a atuação internacional e a preservação de recursos naturais, como a Amazônia, dependem diretamente da capacidade do país de exercer tanto a soberania interna quanto a externa, equilibrando autonomia decisória e inserção global.
Este artigo analisa a soberania sob três perspectivas: (1) seus fundamentos clássicos e a evolução histórica do conceito; (2) as dimensões internas, externas, formais e substanciais; e (3) os desafios e limites da soberania no mundo contemporâneo, com especial atenção a exemplos brasileiros.
1. Fundamentos Clássicos e Evolução Histórica
As teorias clássicas de soberania emergiram para explicar quem detém o poder supremo dentro de um Estado e como ele deve ser exercido. Elas foram determinantes para a consolidação do Estado moderno e continuam influenciando debates políticos e jurídicos.
Soberania absoluta
Jean Bodin, no século XVI, foi o primeiro a sistematizar o conceito moderno de soberania, definindo-o como o poder absoluto e perpétuo de um Estado, superior a qualquer outro poder interno e não sujeito a interferências externas, exceto às leis divinas e naturais (Tóth, 2023; Slongo, 2021). Thomas Hobbes, por sua vez, reforçou a ideia de soberania indivisível como condição para evitar o caos social, justificando a autoridade absoluta de um soberano (Lee, 2016; Gordon, 1999).
Soberania popular
Em contraposição, John Locke e Jean-Jacques Rousseau desenvolveram a teoria de que a soberania reside no povo, que delega o poder ao governo por meio de um contrato social. Essa perspectiva fundamentou o constitucionalismo moderno, consagrando a ideia de que a legitimidade política deriva da vontade popular (Lee, 2016; Herzog, 2020).
Soberania constitucional
A experiência histórica demonstrou que a soberania absoluta nunca se concretizou plenamente. O constitucionalismo e o federalismo introduziram limites e divisões ao poder soberano, tornando-o mais responsável e compartilhado (Herzog, 2020; Shinoda, 2000).
2. Dimensões e Classificações da Soberania
A soberania pode ser analisada sob diferentes dimensões, fundamentais para entender sua aplicação na prática.
Soberania interna
Refere-se à autoridade suprema exercida dentro do território nacional, com poder de criar leis, manter a ordem e controlar as instituições políticas e jurídicas. No Brasil, a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) na interpretação da Constituição é um exemplo de soberania interna (Goodwin, 1974; Perruchoud, 2012; Souffrant, 2013).
Soberania externa
Diz respeito à independência do Estado no cenário internacional, incluindo a capacidade de firmar tratados, participar de organizações e conduzir sua política externa sem subordinação a outros Estados. A participação do Brasil na ONU e a assinatura de acordos multilaterais exemplificam essa dimensão (Berg & Kuusk, 2010; Kyris, 2022).
Soberania formal e substancial
A soberania formal é o reconhecimento jurídico e político do Estado pela comunidade internacional. Já a soberania substancial refere-se à capacidade real de agir de forma autônoma. Um país pode ter soberania formal, mas depender de outros em áreas estratégicas — como o Brasil na importação de fertilizantes —, limitando sua autonomia efetiva (Bosque, 2020; Khizar & Siddique, 2024).
3. Desafios e Limites da Soberania no Mundo Contemporâneo
O avanço da globalização, a interdependência econômica, as mudanças climáticas e a revolução digital impõem novas fronteiras à soberania estatal.
Globalização e interdependência
A intensificação das trocas comerciais e financeiras, bem como a atuação de empresas multinacionais e organizações internacionais, reduzem a capacidade dos Estados de controlar integralmente suas economias e políticas (Lake, 2003; Khizar & Siddique, 2024).
Dependência tecnológica
O controle sobre dados, infraestrutura digital e cadeias de suprimentos é cada vez mais central para a soberania. Países que dependem de tecnologias externas podem sofrer coerção política ou econômica (Couture & Toupin, 2019; Pohle & Thiel, 2020; Robles-Carrillo, 2023).
Pressões políticas e sanções
Sanções econômicas, bloqueios comerciais e embargos podem restringir a autonomia externa, como no caso de exportações brasileiras impactadas por barreiras internacionais (Goodwin, 1974; Thompson, 2006).
Soberania ambiental
No Brasil, a Amazônia é um ativo estratégico cuja preservação envolve disputas globais. Nas conferências da COP, o país negocia não apenas compromissos ambientais, mas também a defesa de sua soberania sobre o bioma.
Conclusão
A soberania permanece como um conceito central para a política e o direito internacional, embora sua aplicação e significado tenham evoluído ao longo do tempo. As teorias clássicas forneceram os alicerces para compreender a autoridade suprema do Estado, enquanto as classificações internas, externas, formais e substanciais permitem uma análise mais detalhada de como essa autoridade se manifesta e se limita na prática.
No mundo contemporâneo, a soberania é desafiada por fenômenos como globalização, interdependência tecnológica e crises ambientais. No caso brasileiro, a preservação da soberania exige não apenas reconhecimento formal, mas também a construção de capacidades internas e externas que garantam autonomia real diante de pressões econômicas, políticas e ambientais.
Referências
BERG, E.; KUUSK, E. What makes sovereignty a relative concept? Empirical approaches to international society. Political Geography, v. 29, p. 40-49, 2010. DOI: https://doi.org/10.1016/J.POLGEO.2010.01.005.
BODIN, J. Les six livres de la République. Paris: Jacques du Puys, 1576.
BOSQUE, M. The sovereignty of the Crown Dependencies and the British Overseas Territories in the Brexit era. Island Studies Journal, v. 15, n. 1, p. 151-168, 2020. DOI: https://doi.org/10.24043/isj.114.
GORDON, S. Controlling the State: Constitutionalism from Ancient Athens to Today. Cambridge: Harvard University Press, 1999. DOI: https://doi.org/10.5860/choice.37-5035.
GOODWIN, G. The Erosion of External Sovereignty?. Government and Opposition, v. 9, n. 1, p. 61-78, 1974. DOI: https://doi.org/10.1111/j.1477-7053.1974.tb00878.x.
HERZOG, D. Sovereignty, RIP. Princeton: Princeton University Press, 2020. DOI: https://doi.org/10.2307/j.ctvzpv70z.
HOBBES, T. Leviatã. São Paulo: Martins Fontes, 2003 [1651].
KHIZAR, S.; SIDDIQUE, S. Globalization and the Erosion of National Sovereignty: Challenges and Transformations. Social Sciences Spectrum, v. 3, n. 4, p. 172-189, 2024. DOI: https://doi.org/10.71085/sss.03.04.172.
KYRIS, G. State recognition and dynamic sovereignty. European Journal of International Relations, v. 28, p. 287-311, 2022. DOI: https://doi.org/10.1177/13540661221077441.
LAKE, D. The New Sovereignty in International Relations. International Studies Review, v. 5, p. 303-323, 2003. DOI: https://doi.org/10.1046/J.1079-1760.2003.00503001.X.
LEE, D. Popular Sovereignty in Early Modern Constitutional Thought. Oxford: Oxford University Press, 2016. DOI: https://doi.org/10.1093/acprof:oso/9780198745167.001.0001.
LOCKE, J. Segundo tratado sobre o governo civil. São Paulo: Martins Fontes, 1998 [1690].
PERRUCHOUD, R. State sovereignty and freedom of movement. In: BETTS, A. (org.). Foundations of International Migration Law. Cambridge: Cambridge University Press, 2012. p. 123-151. DOI: https://doi.org/10.1017/CBO9781139084598.006.
ROUSSEAU, J.-J. Do contrato social. São Paulo: Martins Fontes, 2006 [1762].
SHINODA, H. Classical Constitutional Notions of Sovereignty. In: WALKER, N. (org.). Sovereignty in Transition. Londres: Palgrave Macmillan, 2000. p. 24-44. DOI: https://doi.org/10.1057/9780333981764_2.
SLOONGO, P. Sovranità e dominio nella République di Jean Bodin. Res Publica. Revista de Historia de las Ideas Políticas, v. 24, p. 1-20, 2021. DOI: https://doi.org/10.5209/rpub.70125.
SOUFFRANT, E. Global Democracy and Sovereign International Agents. In: SOUFFRANT, E. Formal Transnational Law. Londres: Palgrave Macmillan, 2013. p. 81-83. DOI: https://doi.org/10.1057/9781137337979_13.
THOMPSON, H. The Case for External Sovereignty. European Journal of International Relations, v. 12, p. 251-274, 2006. DOI: https://doi.org/10.1177/1354066106064509.
TÓTH, Z. Theories on Sovereignty. Central European Journal of Comparative Law, v. 4, n. 1, p. 175-195, 2023. DOI: https://doi.org/10.47078/2023.1.175-195.




Comentários